O INSTRUMENTO DO FOTÓGRAFO ou O FOTÓGRAFO DO INSTRUMENTO Vilém Flusser |
Íris, agosto de 1982
Curiosa profissão, esta. A maioria das profissões exige engajamento em determinado assunto. Sapateiro engaja-se em sapatos, construtor civil em casas, cientista em física, ministro no governo. Quanto ao fotógrafo, este se engaja na máquina fotográfica, que não é assunto, mas instrumento. É como se o sapateiro se engajasse em agulhas, o construtor em bulldozers, o físico em microscópios, o ministro em papeladas. Ou, para quem considera fotografia como arte: como se o escultor se engajasse, não na pedra, mas no martelo. Obviamente, ser fotógrafo não é ter profissão como o são as outras.
Concentra o interesse do fazer no instrumento, não na obra. E isto por duas
razões distintas: (1) a máquina fotográfica é um tipo novo de instrumento, e
(2) a fotografia é um tipo novo de obra. (1) Desde que o homem é homem, recorre a utensílios para modificar o mundo. Os utensílios (facas, lanças, potes) são prolongamentos do corpo humano, e imitam órgãos do corpo (dentes, braços, palmas). O homem está cercado por seus utensílios ao enfrentar o mundo. Cercado por "cultura". Com a revolução industrial, esta situação se transforma. Os utensílios passam pelo crivo da ciência e tomam-se instrumentos de alto custo e de tamanho grande: facas se tornam tornos, lanças se tornam foguetes, potes se tornam silos. Não mais cercam o homem, mas passam a formar, eles próprios, centros (industriais e administrativos). A humanidade se divide em duas: parte
possuidora de instrumentos (capitalistas) e parte possuída pelos
instrumentos (proletariado). A relação homem-utensílio pré-industrial vai ser
invertida. O instrumento não mais funciona em função do homem, mas o homem
passa a funcionar em função do instrumento, seja ele proletário ou capitalista.
A isto se chama "trabalho alienado". Máquinas fotográficas são instrumentos pós-industriais: aparelhos. Transformam a relação homem-utensílio tão radicalmente, que não mais é possível falar-se em trabalho no significado tradicional do termo. Isto se deve à sua impenetrável complexidade. São caixas-pretas. Quem recorre a aparelhos, sabe apenas confusamente o que se passa no interior de tal caixa. Sabe manipular apenas seu input e output. Pois os aparelhos tendem a ficar progressivamente menores e mais baratos. Além de mais eficientes e onipresentes. De maneira que se toma sempre mais fácil e acessível sua manipulação, e sempre mais difícil compreendê-los. Devido à facilidade da
manipulação os aparelhos parecem funcionar em função do homem. Devido à sua
complexidade parece que o homem funciona em função dos aparelhos. Na realidade,
homem e aparelho se co-implicam, e vão formar um amarrado de funcionamento: a
máquina funciona em função do fotógrafo se, e somente se, este funcionar em
função da máquina. Pois o fotógrafo se engaja precisamente em tal amarrado de funcionamento. Quer descobrir, experimentalmente (e também teoricamente), quais as possibilidades oferecidas por tal co-implicação homem-aparelho. Para ele, o problema industrial da divisão do trabalho (quem possui os instrumentos, e quem deve possuí-los?), não mais se coloca. O problema a ser resolvido é o do
funcionamento. Quem dominará: será o aparelho quem dominará o homem, ou será o
homem quem dominará o aparelho? Tornar-se fotógrafo profissional é procurar
resolver este problema. (2) Desde que o homem é homem produz obras, isto é, imprime informação sobre pedaços do mundo. Imprime a forma do sapato sobre o couro, a da casa sobre o tijolo. Tal informação materializada vai ser consumida: a casa ruirá, o sapato será gasto. Mas enquanto isto não acontecer a informação é conservada na obra. Isto é o valor da obra: ser ela conservadora de informação, a qual pode ser materialmente transportada e trocada por outra. E é possível medir tal valor pela escala do dinheiro. Com a revolução industrial, esta situação se transforma. A informação não mais é diretamente impressa sobre pedaços do mundo, mas passa pelo crivo da ferramenta. O sapateiro não mais imprime a sua idéia do sapato sobre o couro, mas o engenheiro imprime tal ideia sobre a ferramenta, que a imprime sobre o couro. A ferramenta contém doravante o modelo do sapato, da casa pré-fabricada. A
ferramenta que
conserva a informação e a obra passa a ser apenas um múltiplo
estereotipado que
irradia a informação sobre os consumidores. O valor se transfere da
obra para a
ferramenta. Por isto as obras industriais ficam progressivamente mais
baratas. O valor se acumula em mãos dos proprietários das ferramentas.
Sociedade de
consumo é isto. E o valor conservado na ferramenta não é facilmente
transportável e trocável. Isto é o problema da transferência de
tecnologias. Fotografias são obras pós-industriais, informações quase isentas de suporte. O papel que guarda e transporta a informação fotográfica não é verdadeiro suporte. Fotografias são copiáveis de um papel para outro. Negativos não são autênticas ferramentas. São, eles próprios, copiáveis. O
valor não está nem na fotografia nem no negativo. Está no ato de fotografar,
naquele amarrado de funcionamento. Tal valor não é nem transportável nem
trocável, e não pode ser medido em dinheiro. Tal valor é, de
maneira curiosa, eterno: jamais será gasta a informação produzida, por ser
eternamente copiável. Isto contrasta, paradoxalmente, com a efemeridade do ato
fotográfico, e com a efemeridade da fotografia e do negativo. Pois o fotógrafo está engajado precisamente na produção de
tal valor eterno. Isto é: na efemeridade do seu ato. Está engajado na produção
de um máximo de informações, e na produção de informações sempre novas. Com
efeito: o fotógrafo executa dança em torno do mundo para, munido de máquina,
produzir um máximo de informações sempre novas a respeito do mundo. Por isto está ele desinteressado na obra. Não pretende
mudar o mundo, como o faz o trabalho tradicional, mas pretende mudar os outros,
dando-lhes informação a respeito do mundo. Para ele, o problema industrial
(como deve ser o mundo?), não mais se coloca. O problema a ser resolvido é o da
informação: qual deve ser a atitude do homem informado a respeito do mundo?
Tomar-se fotógrafo profissional é procurar resolver este problema. A profissão fotográfica é curiosa, por ser profissão pós-industrial em contexto ainda industrial, e por não se enquadrar bem em tal contexto. Isto é a razão das dificuldades profissionais com os quais o fotógrafo se confronta. |